O
trio eléctrico
De Lorenzo Matteoli,
na
época, Secretário de Turismo e do Esporte da cidade
de Turim -
Tradução,
Edoardo Pacelli
Nunca
estive no Brasil, nem sequer na América do Sul. Conheço
aquele País por ter ouvido falar, como me foi contado e como
se pode ler nos livros. Da mesma forma que se conhecem muitas outras
coisas na vida. Quando eu for ao Brasil estou certo que "o reconhecerei".
Pois era certamente um pedaço de Brasil o grande caminhão/amplificador,
ao redor do qual 20.000 torcedores escoceses, torineses e brasileiros
dançavam o samba na noite de 12 de junho de 1990, na praça
do estacionamento ao redor do estádio "Delle Alpi"
de Turim.
Elder Costa Caldas, dito Fumaça, fazia rolar o ritmo diretamente
da sua pele aos seus instrumentos e olhava, na noite pré-alpina,
enxergando a sua Bahia, enquanto Netinho, (Ernesto de Souza Andrade
Junior), mestiço crespo, oxigenado parecendo mesmo ter cabelos
brancos, cantava "lê- lê oh, lê - lê
oh", havia mais de três horas, sem parar, e as bailarinas
Maristela e Cosette, incansáveis, mexiam-se com a imperceptível
elegância de quem possui o samba nas pernas desde sempre: a
amplificação potentíssima fazia movimentar, como
por inevitável mágica, os vinte mil torcedores e os
envolvia, abraçando-os, num grande panelão feito de
samba, suor e cansaço.
Na barriga eletrônica do caminhão amplificador dois ou
três técnicos eletricistas vigiavam para que todo o complexo
equipamento funcionasse. Do alto da plataforma, em cima do caminhão,
eu olhava a cena pensando nos estranhos casos da vida, perto de mim
o príncipe Sérgio de Iugoslávia com sua jovem
amiga Vanessa - que acabava de sair do papel cuchê da revista
Vogue -, festejava a felicidade do momento. Ele, também, balançando
o corpo comprido ao ritmo envolvente do samba. Não era Turim
que estava embaixo de nós, mas uma cidade do mundo com uma
dimensão inefável, sem futuro nem passado, e o presente
estava suspenso no ar sobre uma almofada de samba, com 60.000 watts
de amplificação.
No mês de maio de 1989 visitou-me um brasileiro, titular de
uma agência de publicidade da Bahia: Edson Barbosa. Edson se
qualificou como o responsável do budget publicitário
do grupo Perdigão, o segundo grupo da indústria alimentícia
brasileira. Barbosa estava acompanhado por Ana Maria Dini Rodrigues,
de profissão R.P.: olhos verdes, equipada com um sorriso que
quebrava as pedras e que parecia apenas saída de um catálogo
de Giorgio Armani.Turim tinha sido sorteada como sede dos jogos do
Brasil, a lenda do futebol mundial, e o problema consistia em como
desfrutar esta ocasião. Falando em um idioma compreensível,
mas absolutamente inqualificável entre as línguas correntes,
Edson me perguntou se eu sabia o que é um trio elétrico.
Confessei a minha ignorância. Então ele esclareceu: "O
trio elétrico é o fim do mundo, um enorme truck, todo
feito de alto-falantes e cheio de amplificadores, (60 000 watt de
amplificação), sobre o truck, grande plataforma com
orquestra e bailarinas que toca o samba e dança o samba, e
se move pela rua e todo mundo segue e dança o samba e ninguém
resiste e fica parado, pois a música mexe com você"
(Este discurso todo foi feito numa mistura de português, italiano
e inglês!)
O conto evocou imagens em certa parte da memória, no arquivo
"carnaval do Rio" e pensei haver entendido sobre o que ele
estava falando. E Barbosa continuou: "Perdigão quer enviar
um trio elétrico para seguir o Brasil na Copa de 90. Vai bancar
tudo; viagem, orquestra, bailarinas... A Perdigão pede apenas
assistência e hospedagem para o grupo durante a estada na cidade".
Mostrou-me algumas fotos e um prospecto de apresentação
da Perdigão. Como me foi confirmado, depois, a idéia
era a de evitar os ladrões da FIFA: a Perdigão não
queria pagar os dois ou três milhões de dólares
para aderir ao contrato publicitário oficial da FIFA, mas queria
estar presente na Copa e identificar-se, de qualquer maneira, com
o time do Brasil.
A idéia não era ruim e, potencialmente, interessante:
Turim teria tido, durante a Copa, um perfil diferente do "homologado"
pela FIFA!
Com o OK da cidade, os brasileiros partiram entusiasmados da Bahia,
embarcando o trio elétrico; em Turim reservamos os quartos
num hotel de Nichelino e resolvemos os problemas ligados à
movimentação do trio pelas ruas da cidade. Tudo estava
resolvido nos limites da imperfeição que conota as soluções
complexas a problemas impossíveis quando, alguns dias antes
do primeiro jogo, no início de junho de 1990, finalmente chegou
o "monstro" de Génova, após uma viagem aventurosa,
com escolta de polícia rodoviária. No grande quintal
da secretaria o monstro é descoberto e podemos ver, de perto,
a "máquina".
Tratase de uma complexa engenhoca tecnológica terceiromundista
evoluída: uma construção baseada sobre uma estrutura
de caminhão, larga de quatro metros e alta de cinco. Pode-se
entrar na barriga por uma portinha na parte de trás e, por
meio de um estreito corredor entre a parte posterior dos enormes alto-falantes
e uma escadinha interna, se chega até a "imperial":
a grande plataforma que hospeda a orquestra e os dançarinos
de samba. Ao redor do trio estão os personagens que o manobram:
brancos, negros, mulatos, crespos, loiros, loiríssimos oxigenados,
crespíssimos morenos, crespíssimos loiros, altos, magros,
pequenos e musculosos. As moças, muito bonitas, loiras e de
cores variados.
Todos muito, muito calmos, com nomes compridos como um romance: Samuel
Martins Medeiro Robinson Cunha, Carlos Alberto De Jesus Silva... As
competências variam do motorista-mecânico factótum,
ao eletrônico da amplificação, ao cantor e diretor
da orquestra e ainda, guitarristas, tecladistas, percussionistas e
dançarinas de samba. A máquina parecia ficar de pé
presa por meio de arames, barbantes e outros componentes de emergência
institucional. O estreito corredor interno é uma floresta de
fios, contatos, derivações, durex, e fita isolante utilizada
em doses maciças com funções próprias
e impróprias. Se tivéssemos olhado no motor, talvez
teríamos descoberto que o carburador ou a caixa de mudança
estavam montados por meio de abundantes fitas. "Tudo bem, tudo
bem..." Os brasileiros perguntaram se podiam testar tocando alguma
coisa para conferir se, depois da longa viagem por mar e pela rodovia,
o trio elétrico não tivesse sofrido algum dano. Dei
logo a permissão, pois não podíamos nos permitir
um clamoroso fiasco na hora H.
Os "duendes" mecânicos, elétricos e eletrônicos,
manobraram e mexeram alguns minutos e, de repente, uma deflagração
de 10 quilotoneladas, fantasiada de samba brasileiro, investiu contra
a região sudoeste de Turim. O funcionário Bogliacino
teve que recorrer à sala de emergência da Secretaria:
já abalado pela vista das bailarinas, não estava preparado
para o golpe e teve uma ligeira parada cardíaca. Eu tive que
controlar algumas dificuldades no meu próprio plexo e, logo
que me reanimei, parabenizei a eficácia do monstro, pensando,
naquele momento, que, nas praças de Turim, a máquina
teria um significativo impacto. Os brasileiros verificaram contatos,
fios, mixer enquanto a deflagração continuava.
Cinco minutos depois, chegaram três carros da guarda municipal
e quarenta telefonemas dos cidadãos do Borgo San Paolo, da
Crocetta e de San Donato-Parrella (localizados num raio entorno de
2,5 Km).
Pensei que iríamos ter alguns problemas, tranqüilizei
os guardas que queriam prender Bogliacino, pedi que reduzissem o volume
do monstro para parar a deflagração, por motivos de
segurança pública. Os brasileiros, visivelmente decepcionados,
obedeceram... "tudo bem, tudo bem, não há problema".
No dia seguinte estava prevista uma primeira exibição:
apresentação à imprensa no café San Carlo,
localizado na praça San Carlo e, em seguida, a atuação
do trio em função exemplificativa com cantor, bailarinas
e samba a todo volume. Os jornalistas presentes escutaram, interessados,
a entrevista coletiva "Perdigão na Copa". A imprensa
sub-alpina apreciou, com o comedimento que lhe é típico.
Aí o trio deu início ao show: começaram a tintinar
os copos, a balançar as luminárias, enquanto as vitrinas
oscilavam perigosamente. Os cidadãos foram trasladados horizontalmente
de alguns metros, mas retomaram, corajosamente, a linha. Dentro de
dez segundos chegaram dez viaturas das guardas municipais e mandaram
bloquear, imediatamente, o monstro, pois todos os sistemas de alarme
dos bancos do centro da cidade ficaram fora do ar por efeito da onda
de choque e ninguém entendia mais nada. A imprensa sub-alpina
ignorou o evento.
Quando chegou o primeiro jogo, Brasil contra a Suécia, o trio
saiu da Secretaria na alvorada para chegar ao estádio sem atrapalhar
o trânsito e iniciou a tocar ao meio-dia: imenso sucesso de
povo. Durante o jogo chegavam, de vez em quando, dentro do estádio,
ecos de samba a 60.000 watt, e, após do jogo, quando
a polícia temia choques entre suecos, torineses e brasileiros
o trio desenvolveu a sua verdadeira, mágica função:
vinte mil entre suecos, torineses e brasileiros dançavam por
horas e horas depois do jogo na esplanada do estacionamento ao redor
do trio.
Grande abraço coletivo internacional ao som do "hitchmu"
do samba. Nunca assisti a algo similar. Bogliacino dominava, do alto
do imperial, controlando, com saboiana compreensão, o desenrolar,
ao ritmo do samba, dos esplêndidos bumbuns das brasileiras vestidas,
praticamente, de nada. O povo dos vinte mil "celtoescandobrasileiros"
se abraçava e se descarregava no samba que parecia não
ter fim. A imprensa sub-alpina, no dia seguinte, ignorou o fato mais
uma vez, mas todos os jornais brasileiros e suecos contaram com entusiasmo
esta nota de cor.
A Perdigão conseguiu dar o seu golpe na Copa. Assim foi com
todos os jogos do Brasil em Turim. Até os temidos escoceses
foram agarrados pelo samba e houve uma fantástica "jamm
session" com os brasileiros e as gaitas que tocavam "Flowers
of Scotland" ao ritmo de samba. A imprensa continuou ignorando.
O trio tocou em Porta Palazzo e mais uma vez na praça San Carlo
com alguma dificuldade por conta de alguns cidadãos que protestaram
e muitos que se divertiam: conta mais o telefonema de uma pessoa que
protesta, do que 30 mil pessoas que se divertem.
Recebemos o conjunto brasileiro na Sala do Conselho e entregamos,
por conta do prefeito Maria Magnani Noia, algumas lembranças
e um presente da cidade de Turim, este, gentilmente patrocinado pela
Publigest: um esplêndido teclado Farfisa que, acho, está
tocando ainda hoje em nome da Cívica Administração
de Turim, sob o céu carioca. Na ocasião fiz um discurso
em português: alguém o preparou para mim e eu o tinha
transcrito foneticamente de modo a poder interpretá-lo com
um sotaque brasileiro muito eficaz. Bogliacino não conseguiu
segurar-se e exclamou, na sua saboiana compostura: "puxa, secretário..."!
Para mim foi o máximo dos elogios. Tudo foi esplêndido,
apesar de fadigoso, até o maldito jogo contra a Argentina:
a derrota do Brasil foi uma tragédia. Nunca Maradona foi tão
execrado.
Naquela tarde o trio ficou mudo, a tripulação em lágrimas,
os dançarinos aniquilados pelo desabamento do céu. Nós,
da Secretaria, estávamos totalmente envolvidos. Bogliacino
parecia quase irrecuperável, apesar da frieza tradicional,
por causa de sua participação em toda a história.
O trio estava em apuros também economicamente: não havia
mais razão de seguir o time nos jogos sucessivos. Toda a máquina
estava preste a um triste retorno.
Mandei o grupo para a nossa fazenda do Brero, para economizar um pouco
de dinheiro e para permitir aos brasileiros de se recuperar, com o
bom ar e saudáveis sonecas. Resolvidos os problemas organizativos
para a volta, liberados na alfândega os "woofers"
comprados na Alemanha para o trio, fui cumprimentá-los e, quando
pedi para que se apresentasse mais uma vez na Praça San Carlo,
para o adeus a Turim, um arrepio tomou conta de todos. Foi a mais
linda noite de saudade brasileira, saudade e "hitchmu".
20 mil torineses dançaram com o trio elétrico acompanhando
o grande carro ao longo da Via Roma e cumprimentando, talvez, o único
evento garboso da horrível mistura de vulgaridade que foi a
"Itália 90".
Na Secretaria a lembrança do trio é vivíssima:
o olho de Bogliacino manda sempre relâmpagos eloqüentes
durante as revocações. As maldições "voodoo"
e cariocas sobre Maradona, multiplicadas pela potência do mágico
triângulo de Turim, tiveram uma poderosa eficácia, pois,
poucos meses depois, aconteceu o seu clamoroso desabamento.
Nunca mais revi alguém dos brasileiros: disseram-me que Pedrinho
canta num bar de Bahia e eu me reprometo, um dia, preencher a minha
lacuna e ir "revisitar" o Brasil onde acho que viver serenamente
com a incerteza seja uma arte consolidada e indispensável.
Com a única exceção da insuportável dor
pela derrota do time emblema!
Lorenzo
Matteoli